quarta-feira, 8 de julho de 2009

Super critica. Vale a pena ler!

Flávio Pinheiro

"O jornalismo já foi uma arte", copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 23/04/04"Em 1965, Gay Talese publicou na revista Esquire ‘Frank Sinatra está resfriado’, um perfil fluvial que mais tarde ocupou 55 páginas de livro, produto de mais de 100 entrevistas - entre elas uma com a senhora que levava numa mochila para cima e para baixo as 60 perucas do cantor. Estávamos no império do lead. Lead é a palavra inglesa que define o primeiro parágrafo de uma reportagem. Devia responder às seguintes perguntas: o que, onde, quando, por que e como. Melhor que respondesse a todas elas em exíguas cinco linhas. Sem ponto.O lead era o triunfo da objetividade sobre a pastosa consistência do ‘nariz de cera’, imensas camadas de coisa nenhuma recheadas de palpitações gongóricas onde a leitura patinava até se chegar ao que realmente importava. O lead produziu objetividade, é verdade, mas também suas seqüelas. A burrice e a falsa impressão de imparcialidade, pragas duradouras, foram as piores. Em algumas Faculdades de Comunicação flagelava-se a rapaziada com um semestre inteiro de aulas só sobre lead.É difícil imaginar quem publicaria no Brasil em 1965 uma reportagem que começasse assim:Frank Sinatra, segurando um copo de bourbon numa mão e um cigarro na outra, estava num canto escuro do balcão entre duas loiras atraentes, mas já um tanto passadas, que esperavam ouvir alguma palavra dele. Mas ele não dizia nada; passara boa parte da noite calado’.Sinatra estava resfriado, não custa repetir. Rouco, de saco cheio, intratável. Não falou nem com Talese. A reportagem está na antologia das melhores da história. Virou raridade bibliográfica no Brasil, onde foi publicada pela primeira vez em 1973 no livro ‘Aos Olhos da Multidão’, editado pela carioca Expressão e Cultura e reeditado só agora. Fazia parte do livro Fame and Obscurity, coletânea de reportagens de Talese, republicado agora com tradução literal ‘Fama & Anonimato’. Nada contra, mas o título original soava melhor. Assim como ‘Bando Selvagem’, tradução mais literal do filme Wild Bunch, empobreceria o português heróico de ‘Meu Ódio Será Tua Herança’.Gerações de jornalistas, aprisionados no lead e em outros grilhões do pesado cenário político, sorviam sofregamente o livro. Passavam-no de mão em mão. As gerações seguintes xerocavam páginas sebentas de exemplares raros e progressivamente despedaçados.A nova edição traz dois brindes. Fez parte do naco de anonimato da primeira edição a reportagem sobre a construção da ponte Verrazano-Narrows, que ligava o Brooklin a Staten Island, distritos de Nova York, no início dos anos 60. Talese a acompanhou passo a passo, ‘rebite a rebite’, como diz Humberto Werneck no esplêndido posfácio da atual edição. Seus heróis são todos anônimos. Em dezembro de 2002 a revista New Yorker publicou uma reportagem de Talese revisitando locais que descreveu e sobreviventes que entrevistou.O outro bônus é ‘Como não entrevistar Frank Sinatra’, uma exemplar reflexão sobre o que foi fazer ‘Frank Sinatra está resfriado’. Nela Talese côa no tempo as lições do perfil e investe contra novas algemas do jornalismo. A devoção ao gravador, por exemplo, que ele abomina porque transforma a arte de escrever em ‘mera transcrição, para o papel, de entrevistas radiofônicas’. E a disseminação de um certo jornalismo de gabinete, que prescinde do olhar, que ‘não suja os sapatos’, para ficar no exemplo de Ricardo Kotscho, citado por Werneck.A primeira e perene lição de ‘Frank Sinatra...’ é a de que é possível escrever um bom perfil sem entrevistar o perfilado, mas entrevistando todo mundo que está à sua volta e observando-o com uma atenção que não se esgota nos gestos, mas nas intenções deles. Talese tentou de tudo para falar com Sinatra e não desistiu até a última hora. Mas achou que já tinha informação suficiente para escrever depois de cinco semanas em Los Angeles. E tinha.A liberdade quase literária colore descrições e permite que o fio condutor de páginas e mais páginas seja um resfriado. ‘Sinatra estava doente. Padecia de uma doença tão comum que a maioria das pessoas a considera banal. Mas quando acontece com Sinatra, ela o mergulha num estado de angústia, de profunda depressão, pânico e até fúria. Frank Sinatra está resfriado.’ E ‘Sinatra resfriado é Picasso sem tinta, Ferrari sem combustível’.O perfil sem o perfilado é visto com desconfiança até com boas razões. Serviu a perfídias e a prerrogativas nada escrupulosas de jornalistas, para além dos frouxos limites do espírito crítico. Mas a recusa ao perfil sem o perfilado empalideceu jornais e revistas mundo afora. É uma patrulha da opinião e sem opinião não se faz bom jornalismo. Talese coloca-se diante de Sinatra:‘(Sinatra) tem a liberdade de um homem solteiro, não se sente velho, faz com que homens velhos se sintam jovens, faz com que pensem que, se Sinatra é capaz de fazer alguma coisa, ela pode ser feita; não que eles mesmos sejam capazes de fazê-la, mas agrada-lhes saber que, aos cinqüenta anos, essa coisa ainda é possível’.Quase tudo em ‘Fama & Anonimato’ é muito bom. Sinatra resplandece. Mas sobra brilho em ‘O Perdedor’, perfil de Floyd Patterson, boxeador, campeão na categoria dos pesos-pesados, que acabara de ir à lona demolido por Sonny Liston, que por sua vez mais tarde desmoronaria diante de Mohamed Ali (então Cassius Clay). Talese começou a vida como jornalista de esportes. Escreveu ao todo 36 artigos e reportagens sobre Patterson. Certamente por isso o conhece muito bem e devassou sua intimidade sem deixar um único ponto de sombra.A descrição de Patterson do nocaute é uma preciosidade, pela ausência de cautelas, de vergonha. ‘Na verdade é uma sensação boa. Você não sente dor, só se sente fortemente inebriado. Você não vê anjos nem estrelas; você se sente numa névoa agradável. Depois que Liston me acertou em Nevada, senti, por uns quatro ou cinco segundos, que todos no estádio estavam junto comigo no ringue, rodeavam-me como uma família’.Aqui, de novo, o jornalismo de Talese não envelheceu. Na sociedade do espetáculo o senso comum privilegia vencedores, espana da vitrine os perdedores. Mais: não há um escasso jargão do esportês. Apesar de muitos progressos ainda existem altos teores de economês, politiquês e, por que não, esportês no defendido jornalismo especializado.Talese sabe que não é só por conspirações malignas que o jornalismo que praticou foi expelido de jornais e revistas. Custa caro deixar um repórter perseguindo um único personagem ou assunto por semanas, às vezes meses. Além disso as bênçãos do talento não se espalham uniformemente. Quem não sabe fazer o chamado ‘jornalismo literário’ confunde a liberdade do gênero com desbragada cascata - invencionice vestida de belas palavras. Jayson Blair, o mentiroso do The New York Times, é o paradigma contemporâneo da cascata.Ele ensina que não haveria New Journalism sem princípios elementares do velho jornalismo como ‘incansável trabalho de campo e fidelidade à verdade e precisão dos fatos’. Poderia acrescentar um atributo sempre revigorante para empreitadas de apuração - o papel de fiscalização dos poderes, do poder político, do poder econômico, de todo o tipo de poder.A precisão dos fatos em Talese era às vezes obsedante como quando ele cita os 34 quilômetros de fio dental desenrolados a cada dia na Nova York dos anos 60. O prazer da curiosa minudência gerou dois cacoetes: o enciclopedismo do corriqueiro, que irradiou-se como metástase, e o feitiço do número, a idéia de que só tem precisão o que se pode expressar com números, o que transforma miséria e violência (para citar apenas dois exemplos) em banalidades opacas.Lido quarenta anos depois, Talese ainda ensina muita coisa. Que o repertório vocabular do jornalismo não precisa ficar confinado a 500 palavras. Mas isso, a bem da verdade, já não é mais assim. O maior dos ensinamentos talvez seja o do insubstituível testemunho de quem reporta um fato ou define uma pessoa. Seu jornalismo é o do grau zero do oficialismo. Explicando melhor: os fatos podem dispensar a chancela de autoridades (do político, do ministro, dos médicos, dos bombeiros, da polícia). Existem porque existem. Basta flagrá-los.

‘Fama & Anonimato’, de Gay Talese. Tradução de Luciano Vieira Machado. Posfácio de Humberto Werneck. Editora Companhia das Letras; 536 páginas.

Tiago Spezzatto, remando no blog.

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